9. Citolão, Guitarrão ou Guitolão?
Carlos Paredes sempre se mostrou para comigo de uma extrema simplicidade e humildade, algumas vezes bastante desconcertante diga-se em abono da verdade, pois invertia frequentemente o papel de um Mestre incontestável que sempre foi (e será, ainda que estejamos privados da sua presença física), num aluno ávido de novos conhecimentos. Foi num desses longos telefonemas que lhe falei de um certo monge beneditino de nome Domingos de S. José Varela (familiar de Reynaldo Varela, também ele guitarrista, violista, compositor e célebre cantor de Fados no virar do séc. XIX). No seu tratado, que intitulou Compendio de musica, theorica, e prática [...] medidas para dividir os braços das violas, guitarras, &c. (Porto, 1806), fala pela primeira vez, a meu conhecimento, de um instrumento que chamou Guitarrão:
A Guitarra, que está em uso, se póde aperfeiçoar, accrescentado-lhe huma 7.ª corda nos bordões, com a seguinte ordem: 1.ª em G, 2.ª em E, 3.ª em C, 4.ª em A, 5.ª em F, 6.ª em D, 7.ª em B, bmol: principiando em G sobreagudo, e acabando e Bmol grave. Sendo Guitarraõ de tres palmos escassos de comprido, ou 22 pollegadas desde o cavallete até á pestana, haverá a seguinte ordem: 1.ª em D, 2.ª em B, 3.ª em G, 4.ª em E, 5.ª em C, 6.ª em A, 7.ª em F; principiando em D agudo, e acabando em F sub-grave. [...] ficando a dedilhaçaõ muito facil na formaçaõ dos tons, e nas volatas. A oitava do Guitarraõ tem palmo, e meio do cavallete á pestana, e a mesma ordem de cordas, affinadas em 8.ª acima das do Guitarraõ. (op. cit. p. 53).
Desconheço a data em que Carlos Paredes encomendou, ao violeiro Mestre Gilberto Grácio, a construção do instrumento que acima se mostra. No entanto a 19 de Julho de 1974 fez uma gravação, para a casa Valentim de Carvalho, já com este instrumento que em muito se assemelha morfologicamente com o Guitarrão descrito pelo monge beneditino. Neste disco, intitulado Manuel Alegre com Carlos Paredes "É Preciso um País" (LP, Decca/A Voz e o Texto, SLPDR 4000, 1974), Carlos Paredes improvisa um acompanhamento com a viola, com a tradicional guitarra portuguesa, e - segundo se lê no texto que acompanha este registo - também usa pela primeira vez "[...] o célebre "guitarrão" ou, como ele próprio o definiu, "citolão" - uma guitarra portuguesa modificada que abrangesse simultaneamente as escalas da guitarra portuguesa e da guitarra clássica [sic]". Estas notas rementem o leitor para um texto complementar escrito por João Bengala (violista, compositor e cantor), onde afirma o seguinte: "Provavelmente Carlos Paredes, nas suas pesquisas, encontrou referência técnica a ele [citolão] por Silva Leite, profundo teórico e compositor para Guitarra Portuguesa do séc. XVIII, imaginando desde logo um instrumento híbrido, harmonicamente auto-suficiente, tal como a Guitarra Clássica espanhola [sic]. No essencial trata-se de uma ampliação da Guitarra Portuguesa, também com seis cordas duplas, tendo no entanto um braço mais longo bem como uma caixa de ressonância maior. Apesar de não ter passado da fase de protótipo, construído por Gilberto Grácio, Paredes extrai dele uma sonoridade majestosa dado o seu timbre mais grave, um intervalo musical de quarta abaixo da afinação da Guitarra Portuguesa de Coimbra."
Uma breve nota crítica ao que se afirma neste confuso e erróneo texto:
- no tratado de Silva Leite nunca é mencionado o citolão ou guitarrão;
- não consigo compreender o que o autor quer dizer com "profundo téorico";
- este executante setecentista nunca escreveu peças para a guitarra portuguesa mas sim para a Guitarra dita Inglesa (cuja afinação mais usual, do grave para o agudo, é: Dó2 - Mi2 - Sol2 / Sol2 - Dó3 / Dó3 - Mi3 / Mi3 - Sol3 / Sol3 (dez cordas, dois bordões fiados para a quinta e sexta; "As Primas, devem ser de Carrinho n.º 8.º, e naõ n.º 7.º, como muitos querem sem attenderem á proporção da Corda. As Segundas, devem ser de Carrinho n.º 6.º. As Terceiras, devem ser de Carrinho n.º 4.º. As Quartas, seraõ dous Bordoens cobertos", cf. Silva Leite, op. cit. pp. 27-28);
- quanto ao incoerente termo "Guitarra Clássica espanhola", dissertarei (numa futura posta) sobre esta errónea terminologia. Não comento a épigrafe que cita Bengala, por se tratar de uma fonte secundária (pouco digna de crédito) e oriunda da pena de Júlio Dantas (1876-1962).
Sensivelmente por volta da década de 1826, foi inserida num livro inglês de viagens (A.P.D.G, Sketches of Portuguese Life. London, 1827, cap. xii, gravura extra-texto n.º X, entre as pp. 221-223) a modinha, Cruel saudade, do célebre guitarrista Manuel José Vidigal (fl. 1795-1824). Esta canção de salão, aparece aí editada com um acompanhamento escrito para a guitarra inglesa, mas para o tocar será provavelmente necessário usar um instrumento montado com onze cordas (sete cordas: três bordões singelos mais quatro ordens duplas, talvez usando a afinação e montagem conforme é acima aconselhado por Varela, em lugar de praticar a scordatura na sexta corda). A celebridade desta modinha fez com que, além da fonte citada, apareça também anotada num manuscrito (compilado c. 1830) com um acompanhamento de viola francesa (de seis cordas simples) sendo posteriormente editada por Cesar das Neves (1841-1920) no Cancioneiro de Músicas Populares, Porto, 1902 (vol. 2.º, fasc. 31, pp. 66-67).
(continua...)