domingo, junho 19, 2005

9. Citolão, Guitarrão ou Guitolão?

A Guitarra, que segundo dizem, teve a sua origem na Gram-Bretanha, he hum instrumento, que pela sua harmonia, e suavidade tem sido aceito por muitos Póvos, [...] e vendo eu que a naçaõ Portugueza a tinha tambem adoptado, e se empenhava em tocalla com a maior perfeiçaõ, desejando concorrer para a intrucção dos meus Nacionaes, com esse pouco cabedal que possuo, por naõ haver Tractado algum que falle desta materia, compus o presente Opusculo, [...]
(António da Silva Leite, Estudo de Guitarra [...]. Porto, 1796, II, p. 25)

Conheci pessoalmente o compositor e exímio guitarrista Carlos Paredes (Coimbra, 1925-Lisboa, 2004) só na década de 1972, data que coincidiu com o meu regresso a Portugal depois de uma larga estada na Suiça, onde estudei na Schola Cantorum Basiliensis, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Fomos apresentados por um amigo comum, permitindo desde logo - graças à sua extrema amabilidade e simpatia - uma frutuosa troca de pontos de vista sobre as mais variadas matérias, mas onde a música clássica (sobretudo a do período barroco) e os instrumentos de corda dedilhada, em particular, eram o tema mais frequente dos nossos longos telefonemas (podiam durar várias horas!). Nessa altura Carlos Paredes vivia na Estrada de Benfica (paredes meias com o meu amigo e colega, Rui Vieira Nery). Só muito mais tarde, por volta de 1982, quando este virtuoso guitarrista se mudou para a Avenida do Uruguai, a nossa cavaqueira deixou de se fazer via telefónica, sendo substituída por passeios a pé, ao cair da tarde, quase sempre em frente da Igreja de Benfica ou da Pastelaria Nilo, que frequentava com assiduidade.
Carlos Paredes sempre se mostrou para comigo de uma extrema simplicidade e humildade, algumas vezes bastante desconcertante diga-se em abono da verdade, pois invertia frequentemente o papel de um Mestre incontestável que sempre foi (e será, ainda que estejamos privados da sua presença física), num aluno ávido de novos conhecimentos. Foi num desses longos telefonemas que lhe falei de um certo monge beneditino de nome Domingos de S. José Varela (familiar de Reynaldo Varela, também ele guitarrista, violista, compositor e célebre cantor de Fados no virar do séc. XIX). No seu tratado, que intitulou Compendio de musica, theorica, e prática [...] medidas para dividir os braços das violas, guitarras, &c. (Porto, 1806), fala pela primeira vez, a meu conhecimento, de um instrumento que chamou Guitarrão:

A Guitarra, que está em uso, se póde aperfeiçoar, accrescentado-lhe huma 7.ª corda nos bordões, com a seguinte ordem: 1.ª em G, 2.ª em E, 3.ª em C, 4.ª em A, 5.ª em F, 6.ª em D, 7.ª em B, bmol: principiando em G sobreagudo, e acabando e Bmol grave. Sendo Guitarraõ de tres palmos escassos de comprido, ou 22 pollegadas desde o cavallete até á pestana, haverá a seguinte ordem: 1.ª em D, 2.ª em B, 3.ª em G, 4.ª em E, 5.ª em C, 6.ª em A, 7.ª em F; principiando em D agudo, e acabando em F sub-grave. [...] ficando a dedilhaçaõ muito facil na formaçaõ dos tons, e nas volatas. A oitava do Guitarraõ tem palmo, e meio do cavallete á pestana, e a mesma ordem de cordas, affinadas em 8.ª acima das do Guitarraõ. (op. cit. p. 53).

Desconheço a data em que Carlos Paredes encomendou, ao violeiro Mestre Gilberto Grácio, a construção do instrumento que acima se mostra. No entanto
a 19 de Julho de 1974 fez uma gravação, para a casa Valentim de Carvalho, já com este instrumento que em muito se assemelha morfologicamente com o Guitarrão descrito pelo monge beneditino. Neste disco, intitulado Manuel Alegre com Carlos Paredes "É Preciso um País" (LP, Decca/A Voz e o Texto, SLPDR 4000, 1974), Carlos Paredes improvisa um acompanhamento com a viola, com a tradicional guitarra portuguesa, e - segundo se lê no texto que acompanha este registo - também usa pela primeira vez "[...] o célebre "guitarrão" ou, como ele próprio o definiu, "citolão" - uma guitarra portuguesa modificada que abrangesse simultaneamente as escalas da guitarra portuguesa e da guitarra clássica [sic]". Estas notas rementem o leitor para um texto complementar escrito por João Bengala (violista, compositor e cantor), onde afirma o seguinte: "Provavelmente Carlos Paredes, nas suas pesquisas, encontrou referência técnica a ele [citolão] por Silva Leite, profundo teórico e compositor para Guitarra Portuguesa do séc. XVIII, imaginando desde logo um instrumento híbrido, harmonicamente auto-suficiente, tal como a Guitarra Clássica espanhola [sic]. No essencial trata-se de uma ampliação da Guitarra Portuguesa, também com seis cordas duplas, tendo no entanto um braço mais longo bem como uma caixa de ressonância maior. Apesar de não ter passado da fase de protótipo, construído por Gilberto Grácio, Paredes extrai dele uma sonoridade majestosa dado o seu timbre mais grave, um intervalo musical de quarta abaixo da afinação da Guitarra Portuguesa de Coimbra."
Uma breve nota crítica ao que se afirma neste confuso e erróneo texto:
- no tratado de Silva Leite nunca é mencionado o citolão ou guitarrão;
- não consigo compreender o que o autor quer dizer com "profundo téorico";
- este executante setecentista nunca escreveu peças para a guitarra portuguesa mas sim para a Guitarra dita Inglesa (cuja afinação mais usual, do grave para o agudo, é: Dó2 - Mi2 - Sol2 /
Sol2 - Dó3 / Dó3 - Mi3 / Mi3 - Sol3 / Sol3 (dez cordas, dois bordões fiados para a quinta e sexta; "As Primas, devem ser de Carrinho n.º 8.º, e naõ n.º 7.º, como muitos querem sem attenderem á proporção da Corda. As Segundas, devem ser de Carrinho n.º 6.º. As Terceiras, devem ser de Carrinho n.º 4.º. As Quartas, seraõ dous Bordoens cobertos", cf. Silva Leite, op. cit. pp. 27-28);
- quanto ao incoerente termo "Guitarra Clássica espanhola", dissertarei (
numa futura posta) sobre esta errónea terminologia. Não comento a épigrafe que cita Bengala, por se tratar de uma fonte secundária (pouco digna de crédito) e oriunda da pena de Júlio Dantas (1876-1962).
Sensivelmente por volta da década de 1826, foi inserida num livro inglês de viagens (A.P.D.G,
Sketches of Portuguese Life. London, 1827, cap. xii, gravura extra-texto n.º X, entre as pp. 221-223) a modinha, Cruel saudade, do célebre guitarrista Manuel José Vidigal (fl. 1795-1824). Esta canção de salão, aparece aí editada com um acompanhamento escrito para a guitarra inglesa, mas para o tocar será provavelmente necessário usar um instrumento montado com onze cordas (sete cordas: três bordões singelos mais quatro ordens duplas, talvez usando a afinação e montagem conforme é acima aconselhado por Varela, em lugar de praticar a scordatura na sexta corda). A celebridade desta modinha fez com que, além da fonte citada, apareça também anotada num manuscrito (compilado c. 1830) com um acompanhamento de viola francesa (de seis cordas simples) sendo posteriormente editada por Cesar das Neves (1841-1920) no Cancioneiro de Músicas Populares, Porto, 1902 (vol. 2.º, fasc. 31, pp. 66-67).
(continua...)

sexta-feira, junho 17, 2005

8. Música para o Teatro de Mestre Gil Vicente

Gil Vicente, que faz os autos a elRei
(Auto da Festa, [f. 6 ]; Pastoril Castelhano, Compilaçam, f. 26 v)
Ao contrário do que sucede em Juan del Encina (c. 1498-1529/30), que só faz intervir as canções de sua autoria como remate de algumas das suas Éclogas, em Gil Vicente (fl. 1502-1536) a música - seja ela profana ou sacra, ou consista ainda em danças instrumentais ou em danças-cantadas - percorre toda a sua obra e faz parte integrante e activa da trama do seu teatro e do espaço cénico onde foi concebido. É indiscutível a presença quase constante da Música nos seus autos, revelando-nos assim um conhecimento seguro e profundo da prática musical do seu tempo. Como nos diz acertadamente Albin Eduardo Beau, "[...] em Gil Vicente, a música não é somente elemento acessório, senão também e propriamente cénico, e a sua função não é somente a de criar, como também a de exprimir ambientes sentimentais e psíquicos." Desta opinião comunga também López Castro quando afirma que:
Todo el Teatro de Gil Vicente está impregnado de música. [...] Por eso, la canción no es un mero adorno, sino
cumple una función ascénica: sirve para crear ambiente, desarrollar la intriga y caracterizar psicologicamente a los personasjes. [...] Gil Vicente incorpora la canción al drama. La canción es parte integrante en la elaboración de la pieza dramática, acompañando a la acción y expresando los sentimientos de las personajes.
As canções cortesãs utilizadas no teatro de Meste Gil são as do repertório corrente na Península Ibérica nos finais do séc. XV e primeira metade do XVI, de que o padrão será talvez o vilancete Nunca fué pena mayor, de Juan Urrede (ou Urreda, ou ainda JohannesWreed), compositor flamengo que esteve ao serviço da corte espanhola entre 1470 e 1480, tendo sido escrita sobre um belíssimo poema do primeiro duque de Alba, D. García Álvarez de Toledo (m. 1488) . Esta peça teve uma fama nunca igualada em toda a Península, sendo citada em três autos vicentinos (Barca da Glória, Cortes de Jupiter e Frágua d'Amor). A sua música (escrita a quatro vozes) encontra-se registada no célebre Cancionero Musical de Palacio (CMP), copiado durante o reinado dos Reis Católicos. Outras das peças paradigmáticas que encontramos inseridas nos seus autos deve-se a Pedro de Escobar (alias Pedro do Porto (Porto, c. 1465-Évora, c. 1535), cujo vilancete (também a três vozes ou partes) Lo que queda es lo seguro é, sem dúvida, uma pequena obra-prima da canção cortesã deste período. É mencionado na Barca da Glória, podendo ser encontrada tanto no citado CMP, como no Cancioneiro Musical d'Elvas (CME), copiado a meados de Quinhentos (segundo a opinião de outros musicólogos, no terceiro quartel do séc. XVI), como ainda no Cancioneiro Musical da Biblioteca da Escola Superior de Belas-Artes de Paris (CMBP). O texto desta composição é da autoria do poeta espanhol Garcí Sánchez de Badajoz (c. 1460-c. 1526).
Infelizmente não conseguimos ainda identificar todas as canções mencionadas nas obras de Gil Vicente. Contudo, no estado actual da investigação vicentina é já possível dispor de um corpus assaz significativo deste repertório. Mesmo assim, só para um número bastante reduzido de 47 poesias pudemos encontrar a música correspondente.
Deste significativo repertório gostariamos de salientar o romance Ninha era la infanta, de autor anónimo, incluído nas Cortes de Jupiter (Compilaçam, f. 169: Niña era la iffanta [...] ,"Este romance cantam os planetas a quatro vozes, pera com as palavras delle & musica desencantarem a Moura Tais de seu encantamento, [...]"), tendo sido escrito expressamente para festejar "a partida da ilustrissima senhora iffanta dona Breatiz duquesa de Saboya" (1504-1538; filha de D. Manuel I). "Foy representada nos paços da ribeyra na cidade de Lixboa. Era de M.D.xjx.". Este romance recentemente descoberto num cancioneiro poético-musical português, foi por mim intitulado Cancioneiro Musical da Biblioteca Nacional (CMBN, P-Ln, CIC, n.º 60, anotado entre 1530-1550; cf. BN Digital; Memórias da Música, aqui designado por: "Colectânea de música vocal dos séculos XV e XVI").
Para clausular este texto gostaria de levantar a questão, tão candente quanto intrigante, de saber quem cantaria e tangeria a música requerida nos autos de Mestre Gil, e de que meios - tanto vocais como instrumentais - dispôs o nosso grande dramaturgo? Várias hipóteses podem para já ser adiantadas:
  1. ou eram os próprios actores que interpretavam vocal e instrumentalmente as canções e danças requeridas;
  2. ou eram músicos profissionais contratados pontualmente para cada auto;
  3. ou ainda, eram alguns dos cantores e tangedores que trabalhavam na corte, tais como os da capela ou, mais provavelmente, os que serviram na câmara real de D. Manuel I e D. João III.
Bibliografia:
Alain Eduard Beau,
A Música na obra de Gil Vicente. Coimbra: Edições de Biblos, 1939; separata de Biblos, XIV (1938), pp. 329-355.
Armando López Castro, Gil Vicente: Lírica. Madrid: Cátedra, 1993, pp. 30, 42 2 44.
Manuel Morais,
La Obra Musical de Juan del Encina. Salamanca: Centro de Cultura Tradicional / Diputación Provincial de Salamanca, 1997.
Manuel Morais, Vilancetes, Cantigas e Romances do Século XVI. Transcrição e estudo de [...]. Lisboa: F.C.G./Serviço de Música, 1986. Portugaliae Musica, Série A, vol. XLVII, pp. viii-x e xc-xci; n.º 5.
Manuel Morais, Antologia de Música para o Teatro de Gil Vicente: vilancetes, cantigas, romances e danças. Introdução, selecção e renotação de [...]. Estar / Centro de História da Arte-UE, 2002.
Manuel Morais, "Música para o Teatro de Gil Vicente (
fl. 1502-1536)". Gil Vicente 500 anos Depois. Actas do Congresso Internacional realizado pelo Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol. II, pp. 45-115.

quarta-feira, junho 15, 2005

7. Fontes para a História da Música em Portugal

É com este título que decorre um Projecto de Investigação (apoiado pela FCT) no Centro de História da Arte (CHA)/Universidade Évora, que tem sido chefiado pelo Prof. Dr. Rui Vieira Nery, sendo secundado pelo Dr. João Pedro d'Alvarenga e por mim próprio.
Um dos muitos escolhos com que se deparam os investigadores do nosso passado musical (musicólogos, músicos práticos ou melómanos) reside no facto de ainda não existir em Portugal uma base de dados científica e o mais completa possível, que permita ter acesso ao nosso imenso repertório que, sem interrupção, se inicia nos finais do séc. XIII.
É verdade que algumas Bibliotecas e Arquivos portugueses têm já catálogos onde, a suas expensas, foram publicados parte dos seus espólios musicais (cf. por ex.º: Catálogo do Fundo de Manuscritos Musicais. Organizado por Luís Cabral. Biblioteca Pública Municipal de Porto. Porto, 1982). Mas são poucos, ou melhor muito poucos!
Tomemos como exemplo - entre tantos outros espalhados pelo País - só dois importantes acervos: quantos sabem objectivamente o que na realidade existe no Arquivo Musical da Sé Patriarcal de Lisboa (onde trabalhei durante dezassete anos!) e que contém o maior espólio de música religiosa portuguesa setecentista (e não só), entre as quais destaco algumas das composições que não pereceram no Terramoto de 1755; ou ainda no precioso fundo da Irmandade de Santa Cecíla (do qual sou Irmão) e que se encontra guardado, em condições indesejáveis (espero que os fumadores sejam aí proibidos), na Igreja dos Mártires em Lisboa?
Devo destacar deste caos a Biblioteca Nacional, mais propriamente o trabalho ímpar do seu Centro de Estudos Musicológicos, que tem vindo, de modo faseado, a digitalizar um número já bastante significativo do repertório português dos sécs. XVI ao início do XX, colocando-o on-line gratuitamente (BN Digital; Memórias da Música).
Destaco também o trabalho meritório do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, que publicou quatro catálogos de fundos musicais, nomeadamente: Arquivo das Músicas da Sé de Évora. Organizado pelo C.º José Augusto Alegria. Lisboa: F.C.G., 1973; Biblioteca Pública de Évora. Organizado pelo C.º José Augusto Alegria. Lisboa: F.C.G., 1977; Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra. Organizado por João M. B. Azevedo. Lisboa: F.C.G., 1985; Biblioteca do Palácio Real de Vila Viçosa. Organizado por José Augusto Alegria. Lisboa: F.C.G., 1989.

segunda-feira, junho 13, 2005

6. Recordando um poeta açoriano tangedor de Viola


Cantigas à minha viola

Ó viola encordoada
Com quinze cravos de aposta,
Minha pêra acinturada,
Minha maçã de Bemposta

Quando te toco nas cordas,
À boca do coração,
Vou-me sangrando em saúde
Que nem sumo de limão.

Tens os pontos doiradinhos,
Tens os espaços de luto,
Cada prima é uma flor,
Cada cravelha é um fruto...

Cada bordão é um zangão,
Cada toeira uma abelha,
Ó jardim de madrepérola
Da minha festa vermelha!

Letrinha de 8 somada
Pelas tuas seis parcelas
Mai-las minhas mãos cansadas,
Amarelas... amarelas...

Pendurada a tiracolo
No teu cordão cor de vinho,
És o meu saco de cego,
O meu burro e o meu moinho.

No florão da minha viola
Pus uma tira de espelho,
Para ver, de quando em quando,
Se estou novo, se estou velho.

Na caixa da minha viola
Há um letreiro que diz:
V. DA SILVA, VIOLEIRO,
ILHA TERCEIRA – PARIS.

Mas um tolo, um engraçado,
Colou com cuspo uns tarjões:
V. DA SILVA, CANGALHEIRO DE ALMAS,
FAZ VIOLAS E CAIXÕES.

Meu amor, deixa falar!
Dorme, não percas a esperança!
Morta, na minha viola,
Serás como uma criança.

Que seis meninas de arame
É que te levam à campa,
Com seis florinhas de pau
Espetadinhas na tampa.

E o limão, a violeta,
A madrepérola, o espelhinho
Hão-de te servir de terra
E de mortalha de linho.

Minha viola de luxo,
Minha enxada de cantar,
Meu instrumento de fogo,
Caixinha do meu chorar!

Viola, bordão de prata,
Vida violeta, violeta...
Prima, coração me mata...
Poeta! Poeta! Poeta!

(Vitorino Nemésio (1901-1978)
, Festa Redonda, Lisboa, 1950, pp. 77-79).

Talvez muitos dos melómanos portugueses não saibam que o grande poeta, romancista e académico açoriano Vitorino Nemésio frequentou, nos idos anos de 1964, a Classe de Viola do Prof. Emilio Pujol (1886-1980), no Conservatório Nacional. Nessa data eu era um jovem de vinte anos; infelizmente só mais tarde me apercebi que tinha privado de tão perto com esse ilustre homem das letras portuguesas e quão tinha perdido do seu enorme saber...!

Neste "funesto dia" não poderia deixar de me associar à memória desse outro preclaro poeta que foi Eugénio de Andrade (não sei se escreveu alguma poesia alusiva à Viola). Termino esta posta com dois versos daquele que foi o princips dos nossos poetas renascentistas: "E aqueles que por obras valerosas / Se vão da lei da Morte libertando." (Luís de Camões, Os Lusiadas, Lisboa, 1572, I, vv. 13-14).

5. D. João III e a Música

"La mar donde he hechado este libro es propriamente el reyno de Portugal que es la mar de la musica: pues en el tanto la estiman: y tambien la entienden."
(Luís Milán, El Maestro [...] Dirigido al muy alto e muy poderoso e invictissimo principe don Juhan: por la gracia de dios rey de Portugal y de las yllas., f. A3v).
O nosso rei D. João III, dito o Piedoso (reinou entre 1502-1557), foi um grande protector das Artes em geral e da Música em particular. Além da citada obra para a viola de seis ordens do valenciano Luís Milán (c. 1500-c. 1561), foi também o mecenas do tratado do importante teórico andaluz, frade Juan Bermudo: Declaración de instrumentos [...] dirigido al clementissimo y muy poderoso don Joan tercero deste nombre, Rey de Portugal [...], dada à estampa em Ossuna no ano de 1549. Estas duas obras de referência pertencem ao actualmente designado Siglo de Oro espanhol.

Bibliografia:
Francisco Léon Tello, Estudios de história de la teoría musical. Madrid: Instituto Español de Musicologia, 1962.
Howard Mayer Brown, Instrumental Music Printed Before 1600. A Bibliography. Cambridge, Massachusets, 1965.
Samuel Rubio, História de la música española. 2. Desde el "ars nova" hasta 1600. Madrid: Alianza Música, 1983.

sábado, junho 11, 2005

4. Dança da Folia


Três homens dançando (e cantando?) uma Folia. Pormenor de um conjunto de tapeçarias da “Conquista de D. João de Castro” (1538-1548), in Museu de História de Arte de Viena, Áustria. Comparem-se as descrições detalhadas desta dança-cantada nos dois documentos históricos abaixo citados - Venturino e Covarrubias - com o que se vê claramente nesta fonte iconográfica: guisos atados nos artelhos, na barriga da perna e na coxa; três pandeiros (sem membranas, só aros), com guizos (em lugar das tradicionais soalhas) são também representados nesta bela e preciosa tapeçaria renascentista.

sexta-feira, junho 10, 2005

3. Sobre a nossa Folia

O Vilancete "Naõ tragais bourzeguis pretos”, de autor Anónimo, é proveniente de um dos mais volumosos cancioneiros poético-musicais portugueses, que se guarda na Bliblioteca da Escola Superior das Belas Artes de Paris (F-Pba, Ms. 56; CMBP, ff. 129v-130, n.º 127). Escrito a três vozes (S1, S2 e T) foi construído sobre o célebre baixo ostinato da Folia. É provável que o texto deste vilancete (tb. aparece escrito com a grafia vilançete) seja alusivo às pragmáticas anti-sumptuárias de 1566 ou 1570, implementadas durante o reinado de D. Sebastião (1554-1578).
Segundo a opinião abalizada do eminente tratadista espanhol Francisco Salinas (1513-1590), lê-se na sua monumental obra, De musica libri setpem (Salamanca, 1577), que a Folia, dança-cantada de origem popular (entenda-se como oriunda de uma classe social não cortesã), é de proveniência portuguesa: "[...] ita et ultima in eadem desinat, ut ostenditur in vulgaribus quas Lusitani Follias vocant, ad hoc metri [ypercatalecticis] genus et ad hunc canendi modum institutis, qualis est illa, cujus cantus usitatus est, [...]" (as canções populares que os portugueses chamam Folias, compostas segundo este metro [hipercataléptico] cuja melodia é...). De qualquer modo, não se deve confundir este baile-cantado com o esquema harmónico-melódico de origem italiana com que foram elaboradas as primeiras Folias que nos chegaram, anotadas nos cancioneiros musicais espanhóis, a partir de 1500 (do qual o nosso vilancete é um importante mas isolado testemunho). É interessante também notar que as primeiras citações desta dança se devem ao nosso Gil Vicente (fl. 1502-1536), nomeadamente, entre outras, na tragicomédia Templo d'Apolo, representada na partida "da sacra e preclaríssima emperatriz", D. Isabel de Portugal (1503-1539; filha de D. Manuel I e de D. Maria), quando casou, em 1526, com o Imperador Carlos V: "Cantadme por vida vuestra / en portuguesa folía / la causa de su alegría / y vere deso la muestra / y veréis la gloría mía."; Ordenaram-se todos os Romeiros em folia e cantaram a cantiga seguinte, "Pardeos, bem andou Castella".
No minucioso relato que Giovanni Battista Venturino nos deixou da viagem que o Legado do papa Pio V, o Cardeal Alexandrino, fez a Espanha e Portugal na década de 1571, descreve esta dança que se executou em Elvas, nos seguintes moldes: "La follia, era di otto huõi vestiti alla Portughesi, che con cimbalo et cifilo accordati insieme, batendo con sonaglie à piedi, festiggiando intorno à uno tamburo cantando ir lor lingua versi d'allegrezza, ch'io tengo appresso di me, nom m'essendo parto convenir alla gravità il metterli apunto come soli se ragiravano, rallegrandosi con enniuno con l'altro dell'entrata del legado, verso il quali si volgevano sempre [...]".
Descrição muito semelhante em muitos aspectos à supra citada de Venturino, vamos encontrar em Sebastián Covarrubias (1539-1613), no seu Tesoro de la Lengua Castellana (Madrid, 1611) o seguinte: "FOLIA, es una cierta dança Portuguesa, de mucho ruido; porque resulta de ir muchas figuras a pie con sonajas y otros instrumentos, llevan unos ganapanes disfraçados sobre sus ombros unos muchachos vestidos de donzellas, que con las mangas de punta van haziendo tornos, y a vezes bailan. Y tambien tañen sus sonajas: y es tan grande el ruido, y el son tan apressurado, que parecen estar los unos y los otros fuera de juizio: y assi le dieron a la dança el nombre de folia de la palabra Toscana, Folle, que vale vano, loco, sin seso, que tiene la cabeça vana."
Do baile-cantado renascentista, escrito sobre o modo maior, métrica de pulsação ternária e tempo vivo, passa, no período barroco, a uma dança estilizada, puramente instrumental, composta em tom menor, tocada com um andamento lento e cerimonioso.

Bibliografia:
José Sasportes, História da dança em Portugal. Lisboa: F.C.G., 1970, passim.
Manuel Morais, "Jornada que Fez el Rey D. Sebastião a Agoa de Lupe Composta por Rodrigo de Beça Seu Capelão", Livro de Homenagem a Macário Santiago Kastner. Lisboa: F.C.G./Serviço de Música, 1992, pp. 361-403.

2. Naõ tragais borzeguis pretos [Anónimo]



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domingo, junho 05, 2005

1. A Nova Música Antiga

A NOVA MÙSICA ANTIGA serviu de título a um programa que realizei na RDP/Antena 2, entre 1989 e 2002. Passados que são três anos, continuo convicto que este título é ainda válido e aplicável ao novo movimento que se fez sentir na Europa, a partir dos finais dos anos 60, na interpretação da chamada Música Antiga, baseada em novas permissas, muito particularmente nas que se fundamentam nas práticas de execução históricas. De qualquer modo, continuamos ainda nos primórdios no que respeita a "uma interpretação histórica" já que, devido à perda de uma tradição viva e directa do imenso e diversificado repertório anterior ao Romantismo, é ainda muito grande o nosso desconhecimento de como soava, por exemplo, a Música Medieval (aqui abarco os sécs. XIII a inícios do XV). Como se cantava, como na prática se tocavam os diversos instrumentos, e, mais importante ainda, qual era a "chave" para ler as diversas notações anteriores à notação mensural negra e branca (esta última conhecida entre nós por Canto de Órgão, entre outros epítetos). O Prof. Robert Snow dizia (como "blague") que o "período medieval era ainda aquele que se podia escrever (e fazer) ficção".
Um sem número de questões poder-se-íam igualmente colocar para a música renascentista, maneirista e barroca. Daí continuarmos humildemente a afirmar que, sem queremos ser positivistas, muito pouco sabemos sobre a interpretação deste imenso repertório, mesmo aqueles que diariamente como eu (tanto na prática diária, como no ensino) tentamos reconstituir honestamente esta belíssima música, sem tentarmos "vender gato por lebre"!
Acabei de regressar de Barcelona onde realizei, no âmbito do programa Socrates/Erasmus, um curso de três dias, na Escola Superior de Música da Catalunha (ESMUC), dedicado aos nossos Cancioneiros poético-musicais renascentistas. As "mil questões" que os diferentes alunos me colocaram (eram oriundos do Departamento de Música Antiga) reforçaram a minha convicção que muito temos ainda de aprender, estudar, intuir e praticar, para que de uma forma convincente e criativa possamos interpretar este nosso riquíssimo repertório, que abarca um leque muito diversificado de formas poético-musicais, tais como o Vilancete, a Cantiga, o Romance e o Madrigal, entre outras...