quarta-feira, agosto 10, 2005

9a. Citolão, Guitarrão ou Guitolão?

Temos conhecimento de que desde meados do século XVIII se construíam Guitarras inglesas montadas com 7 ordens de cordas (4 bordões singelos+3 ordens, ou parcelas, duplas), tendo chegado até nós vários exemplares (alguns em estado original) que se encontram dispersos por vários museus europeus. Por exemplo, no Museu da Música, em Lisboa, guarda-se um instrumento deste tipo feito por Gérard J. Deleplanque (fl. 1755-1792) em Lille (França), sem data, mas seguramente de feitura do último quartel de setecentos (MI, 276). Na etiqueta lê-se:
GÉ[RARD]D J. DELEPLANQUE / [LUTHIER,] RU[E] de la Grande / C[haus]sée coin de celle de[s] / [Dominicai]ns à Lille. 17[76?]
. Marca a fogo, no tampo sob a boca: GÉRARD J. / DELEPLANQUE / A LILLE.
Esta Guitarra inglesa tem um tiro de corda de 470 mm.

(Guitarra inglesa de Gérard J. Deleplanque, P-Lmm, MI 276)
Dois outros instrumentos construídos por este violeiro francês podem ser estudados em Bruxelas, no museu do Conservatoire Royal de Musique. O primeiro (cota: 1525), datado de 1764 é, organologicamente, muito semelhante ao que se preserva no nosso museu (com a excepção de uma rosácea funda de pergaminho) sendo também como ele montado com 4 bordões singelos+3 ordens dupla. Quanto ao segundo (cota: 2916) - datado, Lille 1792 - trata-se de uma arqui-guitarra com teclado, montada com um primeiro cravelhal com 11 cravelhas laterais de madeira (provavelmente distribuídas do modo seguinte: 3 bordões singelos+4 ordens duplas?), enquanto que no segundo cravelhal aparecem mais duas cravelhas, também laterais, de madeira (2 bordões singelos?).
É interessante notar que em Portugal, no último quartel do século XIX, o célebre guitarrista e compositor Ambrósio Fernandes Maia (fl. 1875-1900) nos Apontamentos para um methodo de guitarra (Lisboa: Typ. Lallemant Frère, 1875; P-Ln, B.A. 1162//14 V.; cf. p. 7), diz-nos, que paralelamente à típica guitarra portuguesa usada neste período e montada com doze cordas, agrupadas em seis ordens duplas (que podiam usar tanto a afinação "natural" - igual à da Guitarra inglesa - como a do "fado corrido"), se construíam também instrumentos armados com "[...] 15 ou mais cordas [...], e que se manufacturavam tanto com cravelhas dorsais de madeira como com o carrilhão de chapa, com o tradicional sistema de parafuso sem fim accionado por uma chave de relógio, ou de "chapa de leque" (cf. MoraisG, pp. 95-116). Infelizmente nenhum instrumento de construção portuguesa com estas características chegou até nós.
Em contrapartida, conhecem-se várias Guitarras inglesas com as características organológicas acima referidas construídas em França no último quartel de setecentos por diferentes violeiros, nomeadamente o citado Deleplanque (Lille, 1792), bem como por Renault (Paris, finais do séc. XVII), Renault & Chatelain (Paris,1787) e Louis S. Laurent (Paris, 1775, cf. BainesE, pp. 43-45, n.os 261, 262, 264, 265 e 267).

No passado dia 18 de Junho, pelas 22 horas, integrado no "Festival de Música de Marvão", teve lugar nas ruínas da Cidade Romana de Ammaia, em Marvão, a primeira apresentação pública de um novo instrumento construído pelo Mestre violeiro Gilberto Grácio, sendo por ele designado de Guitolão. Este evento, que teve a honra de ser apresentado pelo Prof. Doutor Rui Vieira Nery, foi seguido de um concerto pelo guitarrista e compositor António Eustáquio, onde também participaram, além do quarteto Ibero-Americano (formado essencialmente por músicos oriundos da Orquestra Gulbenkian), o conhecido tenor Carlos Guilherme. Infelizmente, por razões de ordem profissional, não tive a oportunidade de me deslocar a este belíssimo local, perdendo assim este importante evento. A revista Actual do Jornal Expresso (n.º 1708 de 18 de Junho de 2005, pp. 16-17) dedicou-lhe uma reportagem de duas páginas, da autoria da jornalista Alexandra Carita (que suponho não possuir formação musical), intitulada: Um novo som para o mundo.
Para conhecer o som deste novo (?) cordofone de mão tive de esperar pela apresentação pública que teve lugar em Lisboa, no passado dia 6 de Julho, pelas 19 horas, na "Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa". Sala cheia sobretudo pelos muito melómanos amantes do Fado e da Guitarra portuguesa! O evento iniciou-se com umas singelas palavras da sua directora, Dr.ª Sara Pereira, seguindo-se um pequeno historial sobre a construção do instrumento proferido pelo Mestre violeiro Gilberto Grácio. Após estas duas intervenções, o já citado guitarrista António Eustáquio tocou algumas peças a solo. Infelizmente o local escolhido para esta apresentação não tem as necessárias condições acústicas para se tocar instrumentos de corda dedilhada (falta total de reverberação), prejudicando o intérprete e deturpando as reais qualidades sonoras do instrumento. Seguiu-se um período dedicado a perguntas do público respondidas sobretudo pelo Sr. Gilberto Grácio. Fiquei desse modo a saber que este Guitolão é montado com seis ordens de cordas duplas (tal como a guitarra portuguesa), tem um tiro de corda de 24,5 polegadas (= a 62,23 cm; porquê polegadas?) sendo afinado uma quinta abaixo da Guitarra de Lisboa ou uma quarta da de Coimbra, do agudo para o grave (Mi3/ Mi3; Ré3/ Ré3, Lá2/ Lá2; Mi2/ Mi2; Ré3/ Ré2; Sol2/Sol1):

Segundo as fotos que a seguir reproduzimos, o Guitolão construído por Mestre Gilberto Grácio é, do ponto de vista morfológico e organológico, muito idêntico à Guitarra portuguesa actual (tanto na versão de Lisboa como na de Coimbra), embora apresentando algumas diferenças: caixa de ressonância de maiores dimensões; braço mais longo rematado pela típica voluta; a escala de maiores dimensões, ressaltando sobre o tampo harmónico é dividida cromaticamente por 20 trastes (trastos ou pontos) de metal - 12 colocados até à junção do corpo do instrumento (no modelo da guitarra actual são só 10), sendo os restantes 8 já incrustados na parte da escala que ressalta sobre o tampo harmónico. A forma da caixa, ainda que o autor diga que "[...] foi concebida da minha ideia [sic]" é muito semelhante ao recorte em pera do corpo das guitarras inglesas setecentistas construídas pelo violeiro françês Deleplanque, cujo exemplo acima reproduzido seguramente o Sr. Grácio conheceu já que restaurou (na decada de 1978) vários instrumentos de corda dedilhada para o futuro Museu da Música (um alaúde, MI 254; uma tiorba, MI 252 e uma pandora, MI 254). As madeiras usadas são as tradicionais empregues nestes cordofones de mão: tampo harmónico em "spruce", fundo e ilhargas em pau-santo, braço em cedro do Canadá (?) e escala em ébano. Quanto à roseta colada na boca do instrumento foi aí colocada não só como ornamento mas também, e segundo as palavras do próprio violeiro "[...] para evitar que outros [constructores] soubessem como colocou a barragem interna do tampo do Guitolão [sic]"! Aliás, bocas ornamentadas com rosetas podem ser encontradas em quase todas as guitarras inglesas que conhecemos, muito particularmente nos instrumentos construídos em Braga por Domingos José Araújo (fl. 1806-1812) e que se guardam no nosso Museu da Música (MI 590 e 744). Outra particularidade da construção deste instrumento reside no facto que o tradicional cavalete (de madeira rija ou osso) não assenta sobre a pataleta - base em osso ou marfim onde se pousa o cavalete. Não é nem novidade nem "invenção" de Mestre Grácio pois já se praticava tanto nas Guitarras inglesas como portuguesas desde finais do século XVIII até nos instrumentos construídos em Portugal na década de 194o. Conheço várias guitarras construídas tanto por João Pedro Grácio (Coimbrão, Leiria, 1872-Lisboa, 1962) como pelo seu filho João Pedro Grácio Junior (Lisboa, Cacém, 1903-1967) - pai de Gilberto Grácio - que originalmente não usavam a pataleta.


Guitolão (?) construído por Mestre Gilberto Grácio (n. em 1936), Novembro de 2005

(continua)