sexta-feira, junho 10, 2005

3. Sobre a nossa Folia

O Vilancete "Naõ tragais bourzeguis pretos”, de autor Anónimo, é proveniente de um dos mais volumosos cancioneiros poético-musicais portugueses, que se guarda na Bliblioteca da Escola Superior das Belas Artes de Paris (F-Pba, Ms. 56; CMBP, ff. 129v-130, n.º 127). Escrito a três vozes (S1, S2 e T) foi construído sobre o célebre baixo ostinato da Folia. É provável que o texto deste vilancete (tb. aparece escrito com a grafia vilançete) seja alusivo às pragmáticas anti-sumptuárias de 1566 ou 1570, implementadas durante o reinado de D. Sebastião (1554-1578).
Segundo a opinião abalizada do eminente tratadista espanhol Francisco Salinas (1513-1590), lê-se na sua monumental obra, De musica libri setpem (Salamanca, 1577), que a Folia, dança-cantada de origem popular (entenda-se como oriunda de uma classe social não cortesã), é de proveniência portuguesa: "[...] ita et ultima in eadem desinat, ut ostenditur in vulgaribus quas Lusitani Follias vocant, ad hoc metri [ypercatalecticis] genus et ad hunc canendi modum institutis, qualis est illa, cujus cantus usitatus est, [...]" (as canções populares que os portugueses chamam Folias, compostas segundo este metro [hipercataléptico] cuja melodia é...). De qualquer modo, não se deve confundir este baile-cantado com o esquema harmónico-melódico de origem italiana com que foram elaboradas as primeiras Folias que nos chegaram, anotadas nos cancioneiros musicais espanhóis, a partir de 1500 (do qual o nosso vilancete é um importante mas isolado testemunho). É interessante também notar que as primeiras citações desta dança se devem ao nosso Gil Vicente (fl. 1502-1536), nomeadamente, entre outras, na tragicomédia Templo d'Apolo, representada na partida "da sacra e preclaríssima emperatriz", D. Isabel de Portugal (1503-1539; filha de D. Manuel I e de D. Maria), quando casou, em 1526, com o Imperador Carlos V: "Cantadme por vida vuestra / en portuguesa folía / la causa de su alegría / y vere deso la muestra / y veréis la gloría mía."; Ordenaram-se todos os Romeiros em folia e cantaram a cantiga seguinte, "Pardeos, bem andou Castella".
No minucioso relato que Giovanni Battista Venturino nos deixou da viagem que o Legado do papa Pio V, o Cardeal Alexandrino, fez a Espanha e Portugal na década de 1571, descreve esta dança que se executou em Elvas, nos seguintes moldes: "La follia, era di otto huõi vestiti alla Portughesi, che con cimbalo et cifilo accordati insieme, batendo con sonaglie à piedi, festiggiando intorno à uno tamburo cantando ir lor lingua versi d'allegrezza, ch'io tengo appresso di me, nom m'essendo parto convenir alla gravità il metterli apunto come soli se ragiravano, rallegrandosi con enniuno con l'altro dell'entrata del legado, verso il quali si volgevano sempre [...]".
Descrição muito semelhante em muitos aspectos à supra citada de Venturino, vamos encontrar em Sebastián Covarrubias (1539-1613), no seu Tesoro de la Lengua Castellana (Madrid, 1611) o seguinte: "FOLIA, es una cierta dança Portuguesa, de mucho ruido; porque resulta de ir muchas figuras a pie con sonajas y otros instrumentos, llevan unos ganapanes disfraçados sobre sus ombros unos muchachos vestidos de donzellas, que con las mangas de punta van haziendo tornos, y a vezes bailan. Y tambien tañen sus sonajas: y es tan grande el ruido, y el son tan apressurado, que parecen estar los unos y los otros fuera de juizio: y assi le dieron a la dança el nombre de folia de la palabra Toscana, Folle, que vale vano, loco, sin seso, que tiene la cabeça vana."
Do baile-cantado renascentista, escrito sobre o modo maior, métrica de pulsação ternária e tempo vivo, passa, no período barroco, a uma dança estilizada, puramente instrumental, composta em tom menor, tocada com um andamento lento e cerimonioso.

Bibliografia:
José Sasportes, História da dança em Portugal. Lisboa: F.C.G., 1970, passim.
Manuel Morais, "Jornada que Fez el Rey D. Sebastião a Agoa de Lupe Composta por Rodrigo de Beça Seu Capelão", Livro de Homenagem a Macário Santiago Kastner. Lisboa: F.C.G./Serviço de Música, 1992, pp. 361-403.